Poesia escada abaixo

Este é um blog que fala do passado da cidade, mas hoje abro uma exceção e falo do presente.

Em abril, meu amigo (virtual, mas ainda assim amigo) Mauro Calliari publicou em seu blog Caminhadas Urbanas, e em seguida também na revista Arquiteturismo, um sensível artigo sobre os encantos de caminhar nas escadas do próprio prédio, descobertos durante a pandemia de Covid 19.

Andarilho contumaz, Mauro se viu forçado a caminhar bem menos por causa da quarentena. E resolveu então que, pelo menos, não usaria mais o elevador. “Moro no 11º andar, então, nas poucas vezes em que preciso descer, ponho a máscara e encaro as escadas com determinação”, conta ele. E as subidas e descidas acabaram se revelando “uma experiência surpreendentemente boa, incapaz de rivalizar com as surpresas e prazeres das caminhadas na rua, mas que tem seus encantos”.

Mauro atribui uma parte desses encantos aos sapatos deixados pelos vizinhos para fora das portas, uma atração especial oferecida pela pandemia:

“Há vários, por toda parte. No terceiro andar, porém, tem o meu preferido, o casal de All Star. Antes, tinha só um par, vermelho. Um dia, apareceu outro par, um branco, menorzinho, como se não pudessem ficar longe um do outro”.

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O texto do Mauro influenciou a minha própria fruição das duas escadarias que tenho frequentado: a do meu próprio prédio, onde moro no 3º andar, e a do prédio dos meus pais, enclausurados desde março no 12º.

Juntando-se por vezes a cheiros, a vozes ou música, a um ou outro objeto decorativo e à enorme variedade de tapetinhos e capachos, os sapatos na porta de cada casa tornaram-se um prazeroso meio de fabular histórias, sinais sugestivos da vida que há lá dentro. Alguma coisa tem que ter poesia e beleza neste período tão triste. Que sejam então os sapatos dos vizinhos!

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Mas por que conto isso agora? Porque quero relatar que esta semana, aqui no prédio onde moro, matou-se essa poesia.

Faço aqui uma reconstituição do crime. Tudo começou no início do mês, quando o elevador de serviço foi parado para reforma. A explicação veio por meio de uma circular aos moradores e um aviso caprichosamente pendurado em cada andar: teremos uma equipe de técnicos trabalhando no prédio por 30 dias. Durante esse tempo teremos que subir e descer a pé, mas a compensação virá. Ao fim do período, desfrutaremos de um “equipamento modernizado com tecnologia de última geração”!

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Eu poderia contar pra vocês o que achei sobre fazer essa obra durante a pandemia, ou sobre o significado simbólico de iniciá-la na semana em que se atingia a terrível marca dos 100 mil mortos oficiais. Mas não vou fazê-lo, porque só vim mesmo para falar de sapatos. E também porque, no fundo, a perspectiva de subir e descer a pé por um mês não estava me incomodando: eu já gostava disso desde abril, graças ao Mauro!

Mas um segundo e fatal golpe veio alguns dias depois, na forma de uma nova circular. Já que, além de sapatos, também estou falando de poesia, reproduzo aqui os versos do poema recebido:

“Prezados Srs. Condôminos,
Na qualidade de administradores e por determinação do Corpo Diretivo, vimos ressaltar que é expressamente proibido depositar quaisquer objetos (todo e qualquer tipo de calçado […]) nas áreas comuns do condomínio, como escadarias e hall de serviço, que são rota de fuga, e no hall social. Informamos que tal prática caracteriza infração regulamentar, estando sujeita às sanções previstas na Convenção Condominial, tais como advertência e multa. Sem mais, contando com a colaboração e compreensão de todos, subscrevemo-nos.”

Pelo jeito, quando a falta de elevador mostrou poesia condominial àqueles que ainda não a conheciam, houve quem se incomodou. A beleza tem dessas coisas: alguns convivem bem com ela, outros precisam varrê-la escada abaixo.

Paro por aqui, para ir fazer minha despedida. Ainda dá tempo de subir e descer todos os andares uma última vez.

(As duas primeiras fotos são de Mauro Calliari, no prédio dele. A terceira é minha, no meu.)

5 comentários
  1. Michele Chioccola Neto disse:

    Incrível que uma história possa ser contada após a visão de simples pares de sapato. Também gosto muito de andar pela nossa cidade de São Paulo com o olhar disperso porém capitando o belo onde estiver. Lendo o texto pude me sentir flanando novamente ppr aí. Obrigado!!!

  2. Afonso disse:

    Muito interessante a abordagem. Pena que nem tudo na vida é poesia e que existam tão poucos poetas. A mensagem dos sapatos às portas, quietos, silenciosos, é forte !!! Mas não tão forte, infelizmente, para vencer a cegueira e a burocracia. E esta última se apóia na lei, principalmente para nos punir, nos proibir, nos tolher … Poderiam pedir para deixar os sapatos num canto, ou criar uma condição de pendurá-los, mas não, proibir é tão mais fácil !!! E ameaçam os “condôminos” com a dureza da lei !!!
    Me lembra 43 anos atrás (eu tenho 71). Mudamos para uma nova casa e meus três filhos eram bem pequenos, o mais velho tinha 6 anos. A rua era uma maravilha, calma, fechada na extremidade, as crianças brincavam fora o tempo todo. As preocupações com segurança eram mínimas. Não havia cercas nos jardins, nem grades, nada. Uma vizinha, já mais idosa, tinha uma mureta baixa em seu jardim, talvez de meio metro, mas vigiava o tempo todo as bolas da meninada que lá caiam. E não as devolviam, a não ser que um pai fosse lá buscar (e ouvir um sermão). Ela era o ponto negativo daquele quase paraíso, hoje tão distante. Não sei o que ela lucrava com aquilo, que alegria ela poderia ter … penso que nenhuma, era apenas um capricho. Mas ela sempre agiu assim, nunca mudou.
    Enfim, já que falamos em poesia, me recordo do grande Rubem Braga: “A vida é triste, Sizenando”.
    Abraços !!!

  3. helena disse:

    #guirlandasapateiranow
    #sapatonaportaépoesia
    #degrausesaparos
    #maisamorporfavor

  4. RUY EDUARDO DEBS FRANCO disse:

    …da arte ver a poesia onde ela fica guardada para os olhares mais sensíveis; os do poeta que há em nós.

  5. Oswaldo Soto disse:

    Ótimo texto. Esses tênis me lembraram a poesia de Chico na música “Eu te amo”: “Como, se na desordem do armário embutido
    Meu paletó enlaça o teu vestido
    E o meu sapato inda pisa no teu”

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