Nova Época Editorial

1073

Meu amigo Marcos César da Silva me fez viajar em lembranças, ontem, quando postou no Facebook esta foto de uma casa na Avenida Angélica. Em geral não falo muito de mim aqui, afinal o blog é sobre memórias de São Paulo, e não sobre as minhas, mas hoje não vai dar pra separar.

A foto não está datada, mas os vestidos e chapéus das duas mulheres sugerem que seja da década de 1920. A casa não pode ter sido construída muito antes, então gosto de pensar que as pessoas no portão são seus primeiros moradores, posando orgulhosos ao lado da casa nova. O endereço anotado à mão, Avenida Angélica número 1-A, permaneceria assim até a década de 1930, quando São Paulo adotou o sistema métrico vigente até hoje. Como a casa ficava a 55 metros do início da avenida, o endereço dela passou a ser Avenida Angélica 55.

Nos anos 80, quando eu conheci a casa, esse pessoal da foto já não andava mais por lá. Quem ocupava a casa era um casal já meio idoso, de quem guardo afetuosas lembranças.

Ele se chamava Marc e era francês. Ela chamava-se Miriam (mas todo mundo a conhecia por Dona Mary) e era de algum país do leste europeu, não lembro mais qual. Ambos judeus, chegados ao Brasil já casados, na década de 40, fugindo do horror nazista. Eles não moravam na casa. Eram meus vizinhos num prédio não muito longe dali, eles num apartamento no primeiro andar, eu no terceiro. Na casa da Angélica eles tinham uma editora de livros, a Nova Época Editorial. Eu nunca perguntei, mas sempre imaginei a razão desse nome: é um nome bonito para o negócio de alguém que deixou tudo pra trás e teve de recomeçar a vida.

Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando comecei a visitar a editora, a convite deles, e sempre saía de lá com uns livros de presente. Foi assim que conheci a casa por dentro. Continuei ganhando livros até meus 16 ou 17 anos, e vários deles conservo até hoje.

O que eu achava estranho, na época, é que embora meus vizinhos fossem um casal muito culto, sofisticados até, o catálogo deles não primava em absoluto pela qualidade. Os livros eram baratos (pelo menos é a memória que tenho), mas nenhum se salvava: eram todos muito ruins.

Lembro, por exemplo, de uns dicionários curiosos. Tinha um Dicionário de Siglas e Abreviaturas, que o próprio dono da editora assinava como autor. E um Dicionário Multilíngue, que servia para traduzir palavras de qualquer idioma para qualquer outro. Curiosamente era um volume fino, que condensava essas línguas todas em umas cento e poucas, talvez duzentas páginas. Muitos títulos da Nova Época ainda podem ser achados em sebos. Numa busca rápida pelo nome da editora no site Estante Virtual, encontrei alguns: “Cavalos de Raça e Mulheres de Classe”, de David Niven; “Xaviera Supersex”, de Xaviera Hollander; “Shampoo”, de Robert Alley; “Como se entender melhor com seu filho”, de Shirley Camper Soman.

Também tinha uma biografia do Santos Dumont pelo jornalista Fernando Jorge, talvez o único livro melhorzinho. Esse também é o único que continua sendo reeditado, atualmente no catálogo de outra editora.

Mas eu quero falar mesmo é dos livros do Franz Kafka. Naquela época a obra do Kafka ainda não estava em domínio público, e a editora do casal Mary e Marc detinha os direitos de publicação no Brasil. E eles a publicavam em edições muito mal feitas, toscas mesmo. Nem sequer traduziam do original alemão. As traduções do Kafka eram feitas a partir de edições já traduzidas ao inglês!

Mas o fato é que eram esses os livros que eu ganhava e faziam a minha alegria. E foi desse jeito que, ainda adolescente, fui incentivado a ler A Metamorfose e O Processo. Felizmente, alguns anos depois a obra do Kafka passou a ser publicada pela Brasiliense, e eu pude ler tudo de novo em traduções decentes.

Quando o sr. Marc morreu, no final dos anos 80, Dona Mary fechou a editora. Continuou morando no meu prédio um bom tempo, mas depois se mudou e eu perdi o contato. Fiquei sabendo que ela morreu quase centenária, em 2016.

A casa também ficou em pé por muitos anos, com outros usos. Foi demolida em 2015 e até hoje não construíram nada no lugar, como se vê nas fotos do Google que reproduzo no final do post.

Passados tantos anos da minha convivência com eles, eu me lembro com carinho do casal de editores e lhes agradeço por terem publicado tanto livro ruim. Devia ser o que vendia, e o que dava pra fazer. E muita gente, como eu, deve ter tomado gosto pela leitura lendo os livros rústicos e baratos que eles faziam. Hoje tem bem menos livros sendo feitos, e os que tem são bem menos acessíveis. Assim como aconteceu com a casa, ninguém construiu nada melhor no lugar.

6 comentários
  1. Gê César De Paula disse:

    Martin, que história saborosa essa que você nos trouxe! De fato, nada foi construído de melhor ali…

  2. Dio Sousa disse:

    aprendo muito com ambos! abração!!

  3. Carlos Antonio Lopes disse:

    Martin, deliciosa sua matéria!Amei!Vc. deveria escrever um livro de memórias ou ficção pois é um excelente narrador!Quanto à qualidade dos livros, até mesmo a Edit. Vecchi não era tão caprichosa na época! Tenho várias obras de Pittigrili, Gabrielle d’Annunzio e naquela editora e realmente o material deixa a desejar inclusive com falta de revisão e papel barato. De qualquer forma, talvez se você não tivesse tido acesso a tal literatura, hoje não seria um bom narrador!

  4. Estela Moreira disse:

    Gostei muito da sua estória! Mas ao final, não existe mais casa, e isso foi triste..

  5. Áureo Natal de Paula disse:

    Tenho em mãos um exemplar de «Bons tempos aqueles… tempos de sonhos» de Irving Wallace publicado pela editora em questão, realmente a qualidade editorial é bem pobre, índice que remete à páginas diferentes daquelas que estão no texto, falta de atenção a detalhes (por exemplo, a contracapa é propaganda de duas obras dessa editora, na chamada superior o nome do autor está «Cristiaan Barnard» (sem H) e nas fotos das capas dos livros (Conflitos e O indesejável) o nome está grafado Christiaan Barnard (com o H), qual é o certo? A segunda, com certeza: https://pt.wikipedia.org/wiki/Christiaan_Barnard. Mas como foi dito alhures, melhor existir dessa forma do que essas obras passarem batido sem publicação no Brasil.

Deixe um comentário