Um minhocão na janela

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Hoje li a revista Veja. Não a edição desta semana, claro, que eu não ia estragar meu feriado, mas a de 3 de fevereiro de 1971. A Veja é assim: depois de deixá-la descansar uns 40 ou 50 anos, já dá pra ler.

A matéria que mais me chamou a atenção conta como a cidade estava reagindo a um evento grandioso: a inauguração do minhocão, que tinha acontecido poucos dias antes. O discurso da revista era bem afinado com o da prefeitura, e a matéria festejava a obra-prima de Paulo Maluf:

“Da praça Roosevelt ao largo Padre Péricles (…) o tempo de viagem passou da incerteza entre vinte e cinqüenta minutos à certeza de menos de cinco. Para São Paulo ganhar tôdo esse tempo, certamente valeu a pena devastar uma floresta de 5000 eucaliptos (para os caibros), gastar 58.000 metros cúbicos de concreto (um prédio do tamanho do Empire State de Nova York só precisaria de um décimo disso) e 6.200 toneladas de ferro, num total de 40 milhões de cruzeiros. Pois o minhocão significa que é possível ir da Mooca, na zona leste, à Lapa, na oeste, em doze minutos, um têrço do tempo anterior.”

Ainda segundo a matéria, a reação da população à inauguração do viaduto foi bastante previsível. O paulistano da época, assim como o atual, adorava uma aglomeração. O programa de índio foi o mesmo que se repete até hoje, invariavelmente, em qualquer inauguração de shopping ou de árvore de natal:

“Nos dois primeiros dias da semana passada, aparentemente todos os carros de passeio e táxis de São Paulo em condições de movimentar-se, lotados por famílias, crianças e cachorros, foram praticar o ritual de ‘ir conhecer’. A situação criou notáveis, mesmo para São Paulo, congestionamentos de trânsito. Nos dois dias seguintes, possivelmente temerosos de que o engarrafamento se repetisse, os motoristas realizaram a segunda parte do ritual, o ‘desviar dali a todo custo’.”

805Mas a parte mais interessante é quando a Veja admite que todo esse progresso tinha algum custo. A reportagem tinha visitado os prédios ao longo do elevado e conversado com moradores, e descobriu que para eles, vejam só que coisa, o minhocão estava criando certos “problemas especiais”.

Uma das pessoas entrevistadas foi Cleusa da Silva, de 18 anos, que morava com a mãe em um apartamento a 19 centímetros da pista. “Tenho mêdo de ser atropelada na sala, ou então de que algum malvado salte na minha cama”, disse Cleusa à reportagem. A mãe dela explicou que, por causa do calor, não era possível fechar as janelas do apartamento. “Então os motoristas passam, olham e riem para a gente”.

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Elvira Frederici, 42 anos, apareceu na reportagem estendendo roupas no varal, em seu espaçoso terraço a menos de 1 metro dos carros. “Era o orgulho da gente êsse terraço, num sol de fazer inveja para quem morava em cima”, contou Elvira, saudosa.

E Lília Stevanini, uma secretária de 30 anos, tinha decidido deixar de usar um dos dois quartos do seu apartamento, o que dava para o elevado. De dia o barulho era muito grande, e de noite também vinha “uma luz brutal que atravessa qualquer cortina”.

Nem todo mundo, no entanto, reclamava. João Casanova, um aposentado de 78 anos, estava adorando a vista do terceiro andar. A esposa dele, que pelo jeito não gostava muito do seu João dentro do apartamento, também elogiava: “Com o elevado, a casa ficou mais alegre. Meu marido fica no terraço desde cedo, apreciando o movimento dos carros. Êle prefere o terraço à televisão”. E a Veja aproveitou para concluir: “O que prova que, sem dúvida e em mais de um sentido, o minhocão é um espetáculo”.

É bem possível que Cleusa, Elvira e Lília estejam vivas até hoje. Se estiverem, têm 62, 86 e 74 anos de idade. Espero que tenham sido felizes estes anos todos, e que tenham tido a chance de se mudar logo dali. Já seu João, que hoje teria 122 anos, com certeza já faz tempo que não está mais vendo a vida fugir pela janela.

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22 comentários
  1. Carlos disse:

    Por que esse discurso político agora? O blog é tão legal, e a internet hoje anda tão chata…
    Não estou dizendo que o Minhocão é mesmo um espetáculo, que fique claro. Por mim ele nunca teria existido.

  2. Eduardo Rivas disse:

    Não vi nenhum discurso político no artigo. Não sei o que o Carlos andou lendo, mas deve ter se confundido. A verdade é que nossas grandes cidades foram todas vítimas de um desenvolvimentismo esdrúxulo e equivocado, que fez endeusar o carro em detrimento das pessoas e da própria beleza do local. Nossas capitais são um inferno, e São Paulo é a maior delas. E tudo isso com o aplauso de quem deveria ter sagacidade para perceber o equívoco dessas políticas. No caso da Veja, não me espanta que ela tenha apoiado: atualmente, se dependesse da mentalidade que reina na redação dessa revista, a Amazônia inteira poderia ser raspada para se plantar soja e milho, desde que seja ‘em nome do progresso’.

  3. Carlos disse:

    Eu não escrevi nada sobre a revista Veja, Eduardo. E a “mentalidade que reina na redação dessa revista” tem qual relação com o assunto do post? Isso mostra como o discurso político está muito claro.

  4. Também causou-me estranheza e um certo mal-estar sim, em função principalmente da ironia ao tratar o elevado Costa e Silva como obra prima de Maluf (coisa que, aliás, também não considero nem como arquiteto e urbanista nem como cidadão consciente em termos ambientais) e ao observar a afinação dos discursos da revista e da prefeitura naquele tempo. Em meu blog profissional procuro não externar meu posicionamento político, da mesma forma que este nunca havia feito – até agora.

    A defasagem de 40 ou 50 anos de ‘descanso’ realmente nos permite lançar um outro olhar sobre as matérias de qualquer meio de comunicação da época; mas há que se ter bom senso para considerar que a mentalidade coletiva era muito diferente da nossa atual nos duros anos 70. A finitude dos recursos naturais não era sequer cogitada, certos direitos e temas sociais eram tabu e a limitação do conhecimento humano não nos dava o conforto e comodidade aos quais estamos acostumados nos dias atuais. Curiosamente, ainda assim, a cidade era mais gentil.

    Espero que os próximos artigos tragam mais neutralidade em seus prelúdios.

  5. Que sensacional reler essas aberrações depois de tanto tempo!

  6. Cupertino disse:

    Simplesmente saborosa essa leitura do ponto de vista literário, mais uma “crônica da cidade”, como diria L. Diaféria. Além de nos remeter a uma reflexão – que não poderia deixar de ser polêmica – sobre o sentido histórico de momentos da urbanização da nossa querida São Paulo.

  7. Aldo disse:

    Postagem chata, me deu a impressão de ler o Flavio Gomes

  8. Martin,

    Achei este um dos seus melhores posts. Consegue ligar presente com passado e mostrar claramente o processo social, econômico e político por trás da transformação urbana de SP.

    E deixa claro que o tal preço do progresso continua sendo pago até hoje. Atualmente, talvez pessoas que se consideram mais esclarecidas já não achem tão bom construir minhocões, mas importam-se menos com os shoppings destruindo o comércio de rua e acham natural viver em uma cidade de grades e câmeras vigiando a todos o tempo todo. Mudam-se os tempos, ficam as ideias.

    Além do mais, o texto está com um tom muito bonito. O fecho achei excelente.

    É muita ingenuidade pensar que um blog como este possa existir sem uma leitura política das coisas. Não se trata de um blog sobre fotografias, mas de um blog sobre cidade, e a cidade é uma expressão espacial da forma como as sociedades organizam sua vida. Como não parece que seja a Mãe Natureza quem organiza as cidades, a única alternativa a pensar politicamente sobre a forma como elas foram construídas é não pensar. O que significa aceitá-las como são e não questionar os processos subjacentes à sua construção.

    A riqueza deste blog están na sutileza como nos mostra o que é São Paulo mostrando o que foi São Paulo. Essa sutileza, tão bem estruturada, faz com que a crítica torne-se transparente e delicada.

    Quanto à crítica à revista Veja, surpreendeu-me que incomodasse gente que lê este blog. Mas não tenho como comentar. Desde que desistiram de entregar aqui em casa os exemplares gratuitos que faziam a alegria do meu cachorro, não tenho mais contato com essa maravilha.

  9. Cidadão disse:

    O esquerdismo radical no início do texto foi desnecessário. Suja a imagem do blog, que aparentava estar relacionado a amantes de urbanismo e preservação história e ficou com ar de blog do PSTU. Bobeira.

  10. Felipe disse:

    Prezado Martin, parabéns pela postagem. Ela está impecável!
    Não ler a Veja não é “esquedismo radical” (rs), é apenas bom senso e bom gosto!

  11. Depois disso tudo, não tenho como deixar de me manifestar. São vários pontos, então vou por partes:

    1- Fico feliz em saber que sou lido por gente com posições tão diversas. E fico contente ao ver que minha postagem gerou debate. Mas o debate tem que ser respeitoso: opiniões e críticas o enriquecem, mas xingamentos, ataques e ofensas não acrescentam nada. Por esse motivo, vários comentários não foram aceitos: não estou aqui pra ouvir nem deixar publicar desaforo. Teve gente que realmente baixou o nível, e foi censurada. Em quatro anos e meio de blog, foi a primeira vez que precisei fazer isso.

    2- Ser acusado de “esquerdismo radical” porque declarei que não leio a Veja foi, no mínimo, inusitado. Quero acreditar que a pessoa que disse isso tenha tentado fazer humor. Se não tentou, conseguiu do mesmo jeito: o comentário só pode ser lido como piada.

    3- Não leio a Veja, mas isso tem pouco a ver com posição política ou ideológica. Não leio a Veja simplesmente pela baixa qualidade do jornalismo que se faz lá. Pelo mesmo motivo, também não leio várias outras publicações, independentemente de serem consideradas “de direita” ou “de esquerda”.

    4- Este é um blog que reflete sobre o presente da cidade de São Paulo, usando o passado como desculpa. Como disse o José Carlos Vaz em um dos comentários, é muita ingenuidade achar que a cidade possa ser pensada sem uma leitura política dos fatos. Me causou certa estranheza ver que algumas pessoas nunca tinham percebido isso no blog, e precisaram desta postagem para perceber.

    5- É estranho ver pessoas me acusando de “externar posicionamento político” (como se fosse um problema fazer isso), me cobrando “mais neutralidade”, enfim, me dizendo o que eu posso e não posso escrever no meu próprio blog. O debate é bem-vindo, mas o patrulhamento não é.

    6- Alguns de vocês parecem muito nervosos. Tentem relaxar, que a leitura do blog vai ficar mais prazerosa!

  12. Apu Lhad disse:

    Pessoal querendo mostrar suas posições políticas por aqui ora bolas, o blog é do autor e ele diz o que quer!

    Aliás acho uma tremenda falta de respeito essa obra ser chamada de minhocão, Os anelídeos oligoquetas de padrão morfológico acima dos padrões são muito úteis pra adubar a terra e pescar!

  13. Caro Martin, não fiz e nem faço patrulhamento, isso é uma invenção política digital recente, método de convencimento do qual discordo veementemente. Simplesmente externei a forma de abordagem em meu blog, semelhante ao seu no assunto (arquitetura e urbanismo), e disse apenas que não faço esse tipo de relação, tento apenas – quando referencio algo que é fruto de minha opinião pessoal – jogar a semente para o leitor regar e ver a ideia crescer sob seu próprio cuidado.

    Não assino Veja há décadas também, só achei desnecessário pontuar o artigo com essa opinião pessoal. Questão apenas de gosto, que interfere no meu prazer da leitura. Para relaxar e ler com mais prazer, prefiro fazê-lo sem essas referências; por isso mantenho meu desejo de ler novos artigos com a tal “neutralidade” mas sem cobrar nada; sendo você o dono do espaço, o estilo é absolutamente seu, sou mero convidado (ou intrometido, já que em função de minha opinião não sei qual poderá ser sua opinião a meu respeito).

    Abraços.

  14. Tiago Bolzan disse:

    Esta disputa “petralhas” versus “reaças” está fraturando o país. Levar uma dessas pechas significa desprezo total pelo grupo oposto. Então a visão embaça e tudo passa a ser visto por uma lente que filtra tudo como ruim.

    O Martin externou uma opinião sobre uma revista (que, nesta época, era dirigida por Mino Carta, o mesmo de Carta Capital, vejam vocês). Se esta revista é antipetista, isto não faz dele um militante do PT. Isso é tão óbvio que nem precisaria ter que ser explicado. Vamos parar com esse pensamento binário porque extremismo é coisa de fascista (ou comunista). A verdade sempre está nas nuances, chega de sectarismo!

    Martin, gostaria de dizer que quando eu descobri o seu blog eu passei horas e horas por aqui. E é uma viagem deliciosa, não só pelas fotos, mas pelos seus textos que as acompanham.

    Cheguei aqui através do google. Eu tinha acabado de assisitir “São Paulo S/A” e fiquei besta tanto com o filme quanto com a cidade daquela época, uma personagem à parte. Enlouqueci com aquela cena do Walmor Chagas sobre o Viaduto do Chá e com o Palácio Prates ao fundo. (“Meu Deus, o que era essa coisa linda que não está mais lá?”). Um prédio tão exuberante que fazia o Theatro Municipal trivial. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que ali havia um pavilhão gêmeo, já demolido então?

    Amei ler esta e muitas outras histórias aqui. A sua visão sempre transcendeu a mediocridade, superando blogs semelhantes que se limitam a histórias oficiais e datas históricas, aquele tipo de informação que na escola/faculdade a gente chamava de “decoreba”. Você vai muito além disso, formulando um pensamento crítico e analítico sobre urbanismo, tendo como eixo central o humanismo e o nosso presente.

    A impressão que me dá é que a nossa elite paulistana era muito mais generosa com a cidade na primeira metade do século XX do que na segunda. Eu moro no Centro e reparo que não há ruas e avenidas por aqui sem que todos os fios estejam soterrados há décadas. Hoje, dizem que fazer isto é “muito caro”, mas não há cidade de país desenvolvido com fios emaranhados em postes como temos aqui. a Cidade nunca será Limpa como diz a Lei com esta poluição visual.

    Nós tínhamos uma elite muito mais culta e inteligente que resultou na maravilha que foi esta cidade até os anos 1960. Uma elite que fez a USP para a classe média se formar, que mantinha escolas públicas de alta qualidade para o povo estudar.

    Depois, a geração da elite paulista passou a importar para eles apenas a sua propriedade privada e o que era publico foi se deteriorando cada vez mais até chegarmos rapidamente na desgraça, no colapso e no abandono em que vivemos desde os anos 1980. (Acho a saída do Colégio Caetano de Campos do belo prédio da Praça da República sintomático dessa mudança).

    Não dá pra gastar milhões pra reformar um monumento isoladamente e envolvê-lo em seguida com vidraças para não sofrer vandalismo (e mesmo assim, sofre). Para se ter uma cidade civilizada de fato é preciso civilizar o povo. Quem emporcalha nossa cidade com pixações vem da periferia sem nenhum amparo do Estado. Sua revolta vitima ainda mais nossa cidade, nosso olhos, mas é a prova de que grades, cerca elétrica e etc. não estão dando conta de resolver o problema.

    É preciso iluminar melhor, limpar mais, ninguém vive bem na imundice. Dar moradia digna aos sem teto. (Re)Ocupar.

    Enfim, foi um longo desabafo.

    Mas deixo aqui minha admiração e meus parabéns pelo trabalho.

  15. Estou realmente surpreso com o direcionamento que esta postagem levou. Alguma pequena reação partidária surgiu também nos comentários na postagem sobre os grafites dos Arcos do Jânio, mas ainda assim, distante do que vimos aqui. A minha primeira surpresa é a confusão que alguns leitores fazem ao pedirem ou sugerirem uma neutralidade política do blog. Mas como assim? O assunto aqui é fotografia e, sobretudo, arquitetura e urbanismo, ou seja, temas que remetem ao pensamento da “pólis”, de onde deriva o termo “político”. Quer me parecer que a reação não se deve à lembrança do ex-prefeito Paulo Maluf mas à pertinente e humorada menção feita à revista Veja. E aqui, a minha segunda surpresa: ora, como alguém que se deleita num blog como este pode se incomodar com uma referência a uma publicação que, embora se enquadre na categoria jornalística, não pratica jornalismo há muito tempo. A Veja não é, hoje, nada além de um panfleto. Por que a dificuldade de aceitar tamanha obviedade?

  16. Décio Monteiro disse:

    Aproveitando a assunto segue aqui um poema de minha autoria :
    Diga-me onde moras,
    te direi se tens razão,
    se pensas só em ti,
    resides longe dali,
    que vá abaixo o Minhocão !

    Não sejas comodista,
    e tão pouco egoísta,
    não sejas assim grotesco,
    todos sabem muito bem
    que pimenta no dos outros
    é só simples refresco…

    Isso só serve para quem viveu nos anos 50 e 60, trabalhava no Centro da Cidade , morava na Zona Oeste (como eu), e Zona Leste como MUITOS…

  17. Marina Coatti disse:

    Oi Martin, estou escrevendo minha monografia e precisava muito saber o autor desse texto. Obrigada!

  18. Marina Coatti disse:

    E o título/subtítulo também! Enfim, preciso referenciar a reportagem heehhehe, obrigada!

  19. Oi Marina,
    O título da matéria é “Um Minhocão na Janela”, mas não tem nome de autor. Saiu sem assinatura na Veja nº 126, de 3 de fevereiro de 1971, páginas 26 e 27. Se quiser, tenho a íntegra em pdf.

  20. Marina Coatti disse:

    Legal, Martin! Agradeceria o envio da matéria na íntegra, posso retirar mais informações. Obrigada!

  21. Edson LV disse:

    Parabéns, texto muito bonito e sensível. Eu vivi esse momento como tantos outros paulistanos, não que eu morasse próximo ao minhocão, e seu texto me transportou de volta no tempo, que saudades!

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