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fotos de família

Fotos de turista são um gênero de fotografia meio enfadonho. Costumam ser uma repetição mecânica de poses padrão, mostrando sempre os mesmos ângulos dos mesmos lugares, com pouca ou nenhuma originalidade.

Como disse a filósofa e ensaísta Susan Sontag no livro “Sobre Fotografia”, embora feitas em momentos de lazer, são fotos que reproduzem uma ética ligada ao trabalho: são tiradas quase que por obrigação, diante da necessidade de registrar a viagem. Servem de troféu, provando que a viagem existiu. E são também uma espécie de negação da própria experiência de viajar, pois a câmera na prática se interpõe como barreira entre o visitante e o lugar visitado. A cada atração “obrigatória” por onde passa, o turista dá uma parada, tira umas fotos e segue em frente com o sentimento de dever comprido. A viagem acaba virando pouco mais do que uma desculpa para tirar essas fotos.

Vez ou outra, no entanto, eu me admiro com alguma exceção.

Esta foto veio de Southfield, Michigan, e é da viagem que uma família americana fez a São Paulo em 1960. São turistas que não fugiram muito à regra. Nas dezenas de imagens que produziram, registraram o de sempre: estão lá as vistas obrigatórias do Anhangabaú, as cobras do Instituto Butantan, os jardins do Museu do Ipiranga, entre outros pontos do roteiro paulistano da época.

Mas no meio desse bolo insosso, achei esta maravilha. Captada nas escadarias de acesso ao Museu, a cena é a única em que a rotina das fotos de turista falhou e o fotógrafo parece ter visto alguma coisa em São Paulo.

A foto é de 1973, mas isso pouco importa. Se fosse feita hoje, a única coisa diferente seriam as roupas dos quatro personagens. O cenário segue basicamente igual.

Para quem não reconheceu o lugar, ele aparece identificado no reflexo do vidro, no canto superior direito. Verdadeiro clássico da cidade, até hoje ele atrai personagens como esses, que pagam caro e comem mal, tirando fotos e apreciando a (nem tão) bonita vista que se tem de lá.

A moda colorida e o fundo atemporal me lembraram a música de Belchior, Velha Roupa Colorida, imortalizada em 1976 na voz de Elis Regina, e recentemente regravada por Ney Matogrosso e Sandra Pêra:

“O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer
[…]
No presente, a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

A probabilidade de dois posts seguidos sobre a Vila Bertioga era baixíssima, mas o improvável às vezes acontece. Poucos dias depois da foto que Diniz de Mello Fraga enviou à sua madrinha, eis que cai nas minhas mãos esta outra, que um vizinho dele mandou para a Eslovênia.

O Cine Bertioga abriu em 1953, mas os filmes anunciados na fachada mostram que a foto é de uns anos depois. “Testemunha do crime” é de 1954, e “Os tiranos também morrem” foi lançado em 1955. Há ainda mais dois filmes em cartaz: “Bomba em a selva do terror”, de 1952, e “Em busca de amor”, sobre o qual não encontrei nada.

O cinema ficava na rua Teresina 625, dez minutos a pé da casinha do post anterior. A madrinha do Diniz tinha portanto não só uma casa às suas ordens, mas também um cinema para se entreter. Se fosse hoje, ela teria que andar 4 quilômetros até o Shopping Plaza Mooca.

A foto foi revelada por ali mesmo, no número 221 da mesma rua. Taí outra coisa que não dá mais pra fazer no bairro.

O texto em esloveno, que o google me ajudou a traduzir, não permite saber quem são o homem e os três meninos na porta, mas nos conta um pouco do cinema por dentro:

“Toje naś kino ima 770 mesta napred ima salu di če kaju i sa strasse ularak to śtó pise to je ime od kino.”
(Nosso cinema tem 770 lugares. Na frente há um salão de espera, e o que se lê da rua é o nome do cinema.)

Um cinema de bairro com 770 lugares! Hoje nem os complexos de shopping têm isso.

“Madrinha
esta e a nova Rezidencia que mandei fazer recente mente na cuál esta as cuas ordes
Sao Paulo 24 de Novembro
Rua Jaboticabál 245
afilhado Diniz de Mello Fraga”

A rua Jaboticabal fica na Vila Bertioga, simpático bairro no distrito da Mooca. Mas a casa da foto não está mais no número 245. No seu lugar ergueu-se outra bem maior.

Diniz de Mello Fraga deu o endereço completo, mas foi impreciso na data. Ele enviou a foto à madrinha em 24 de novembro, mas não sabemos de que ano.

De qualquer forma, foi num tempo em que um trabalhador pouco letrado como ele conseguia “mandar fazer” uma casinha como esta na Mooca e colocá-la às ordens da madrinha.

Hoje ele estaria ralando num Uber ou entregando iFood. Talvez nem isso.

A foto, de 1934, é de um casal endinheirado morador do Jardim América. Ela está dentro do carro; ele, certamente atrás da câmera.

Pelo jeito, a intenção foi enviar para a Alemanha um registro do padrão de vida conquistado por aqui. Eu não falo nada de alemão, mas o Google me ajudou a traduzir:

Unsere privatvilla, rua Venezuela 35 im hintergrund. Unser neuer Chevrolet-wagen kaki farbe hell, mit dunkelbraum.”

(Nossa villa privada, na rua Venezuela 35, ao fundo. Nosso novo Chevrolet de cor caqui e marrom.)

Sorte deles terem feito esse registro, que atualmente seria impossível.

Quem mora hoje nesse bairro (se é que alguém mora, pois olhando não dá pra saber) conseguiria no máximo fotografar a mulher e o carro. A casa fica sempre invisível, escondida atrás de um muro fortificado.

Não faço ideia de quem são as duas crianças, mas a rua Maria Antônia, com o prédio da USP à esquerda e o muro do Mackenzie à direita, é inconfundível.

A data está anotada no verso – junho de 1968 – e é ela que torna a foto singular. A Maria Antônia de 68 ficou tão associada aos violentos confrontos de outubro, que parece até estranho que tão pouco tempo antes ela tenha sido palco de uma cena terna e suave como esta.

Pra completar, o carro da foto é um Simca Chambord, o mesmo que a banda Camisa de Vênus homenageou décadas depois. Na música, o Simca simboliza o clima de alegria e descontração dos anos 1960, que a ditadura enterrou:

Eu vi um futuro melhor
No painel do meu Simca Chambord
[…]
Mas eis que de repente foi dado um alerta

Ninguém saía de casa
E as ruas ficaram desertas
Eu me senti tão só
Dentro do Simca Chambord
Tudo isso aconteceu há mais de vinte anos
Vieram jipes e tanques
Que mudaram os nossos planos
Eles fizeram pior
Acabaram com o Simca Chambord!

E pensar que, tantos anos depois, estamos com a ré do Simca engatada de novo.

São Paulo tem algumas coisas que não mudam nunca. Nesta foto, vemos duas.

A primeira é o bonito cenário da foto. Pode não parecer, mas a imagem já tem 53 anos. Mesmo depois de tanto tempo, tudo continua exatamente igual na piscina do edifício Bretagne, na avenida Higienópolis.

A segunda é a cena em si: uma mãe descontraída e seus filhos loirinhos curtindo a piscina, e a babá negra e anônima – a única sem rosto na foto – metida em uniforme branco.

A foto foi tirada em 1965 por um visitante americano e apareceu recentemente à venda em um lote de slides em Brecksville, Ohio. Na época o Bretagne era ponto de parada de excursões, e os turistas entravam para fotografar nossa arquitetura moderna e nossos costumes arcaicos.

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A foto foi enviada pelo cineasta Lufe Steffen, e de cara isso me deixou muito feliz: há tempos eu sou um admirador do trabalho do Lufe (adorei “São Paulo em Hi-Fi”, documentário sobre a vida LGBT na cidade nos anos 60 e 70), mas não fazia ideia de que ele conhecia o blog. Fiquei sabendo agora que ele não só conhece, mas é um leitor assíduo!

A foto é daquelas que, à primeira vista, só fazem sentido para um círculo restrito de pessoas e não têm muito a dizer para quem é de fora. Ela mostra os pais do Lufe, posando felizes e cheios de expectativa em 1975. O próprio Lufe de certa forma também está na foto, tirada dias antes do nascimento dele. Mas para quem não os conhece, a cena não diz lá grande coisa.

Mas isso é só à primeira vista, pois a foto também é daquelas que, com o tempo, viram interessantes documentos acidentais da vida na cidade.

O que confere essa característica a ela é o local que casal escolheu para a pose. Eles estão na porta de casa, mais precisamente no jardim da entrada do Edifício Marajó, prédio de classe média na rua Ministro Gabriel Rezende Passos, esquina com rua Inhambu, em Moema.

Em 1975, esses lugares ainda se prestavam a fotos de família como esta. De lá para cá, perderam completamente essa vocação. Qual é o casal que, hoje em dia, vai querer eternizar esse momento tendo ao fundo, como cenário, a guarita, a grade e os equipamentos de segurança do prédio?

Para quem quiser tirar a prova, aqui vai uma foto atual, tirada do mesmo ângulo pelo próprio Lufe.

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Pela semelhança física, as moças devem ser irmãs.

E pela anotação no verso, certamente feita por uma delas, sabemos que são italianas, que a cena é de 1950 e que a foto foi enviada como lembrança para os pais.

O resto de história se perdeu. A imagem é cheia de enigmas: quem são as duas italianas, que endereço é esse em que elas estão, e até mesmo se o carro é delas ou se estava estacionado ali por acaso na hora da foto.

Mas pra não dizer que eu não resolvi nenhum enigma, pelo menos um deles eu decifrei: o que significa essa numeração tão curiosa na placa do carro: “10-00”.

Na verdade, não foi difícil: encontrei a maior parte da resposta neste texto, publicado em 2009 pelo Ralph Giesbrecht.

Pelo sistema de emplacamento vigente na época, os carros registrados em cada estado recebiam placas com números sequenciais: o primeiro a ser emplacado recebeu a placa “1”, o segundo ganhou a placa “2”, e assim por diante. Mas os números, para facilitar a leitura à distância, eram separados de dois em dois algarismos. Desta forma, a centésima placa recebeu a inscrição “1-00”. A de número 941, por exemplo, acabou ficando “9-41”.

A placa número 59.998 era “5-99-98”. Esta, segundo o Ralph conta, era do pai dele.

E a milésima placa recebeu um “10-00”. Justamente a da foto.

O que não significa que o carro da foto tenha sido o milésimo a ser emplacado em São Paulo. Ele é muito novo pra isso. O que ocorria é que, ao contrário de hoje, as placas não estavam vinculadas ao carro, mas ao proprietário. Quando alguém trocava de carro, a do carro velho passava para o novo. Por isso alguns carros nos anos 50, mesmo não sendo tão velhos, tinham placas com número baixo. É o caso deste.

Talvez não seja muito difícil descobrir quem era o dono da placa 1000. Mas eu já cumpri minha cota de descobertas, e deixo isso para quem quiser ir atrás.

Atualização em 20 de janeiro: O João José Basso, leitor do blog, acaba de resolver mais um dos enigmas da foto. Ele reconheceu o local exato onde ela foi tirada. E não é um lugar qualquer: trata-se do edifício Columbus, demolido em 1971, sobre o qual eu já havia escrito em 2013. Para matar qualquer dúvida de que o prédio é esse mesmo, basta comparar a foto com as que aparecem neste artigo da professora Maria Lúcia Bressan Pinheiro: https://goo.gl/E2jmgZ. Obrigado, João, e parabéns pela memória fotográfica!

Atualização em 22 de janeiro: Aos poucos os enigmas vão se resolvendo: já sabemos de quem é o carro! Desta vez a novidade vem do próprio Ralph Giesbrecht, citado no post, que me escreveu há pouco. Ele tem a lista das placas registradas em São Paulo em 1940, e verificou que a de número 1000, ou 10-00, pertencia um tal João Giannini. E mais: o automóvel emplacado com ela em 1940 era um Packard. Como é a mesma marca do da foto, é bem provável que seja o mesmo carro, visto aqui dez anos depois. Obrigado, Ralph!

998“Questa è la mia casa, quella sinistra”: o italiano que escreve quer que saibamos que a casa dele é a da esquerda.

E para evitar qualquer dúvida, ele marca na foto, com caneta, os limites da casa. O cuidado se justifica: é que o seu sobrado e o do vizinho são geminados, e a fachada pode confundir. Quem não está acostumado com esse tipo de casa pode achar que as duas são uma só.

Na porta do sobradinho está estacionada a “macchina”. Dois símbolos de status bem paulistanos, reunidos numa foto só, tirada em pleno dia de Natal: o imigrante parece orgulhoso de suas conquistas.

59 natais depois, quase nada sobrou da história. Não sabemos quem é o personagem, nem o bairro onde ele morava. Talvez alguém identifique o modelo do carro (será uma perua Dodge?), mas não vamos muito além disso. O italiano mostrou a casa e a perua, mas não deixou seu nome e se esqueceu de passar o endereço.

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