arquivo

bairros

A simplicidade do bar de esquina, os tecidos expostos na entrada da loja vizinha, a rua lateral de terra, a carroça puxada por burro. Quase tudo na foto sugere uma atmosfera de interior.

Quase tudo, também, parece empoeirado, gasto e feio.

A exceção é o reluzente Chevrolet 1948 preto, estacionado. O carro é um táxi (quem diz isso é a placa vermelha) e é o elemento mais urbano e cosmopolita da foto. Ele sugere que estejamos em São Paulo, mas não é suficiente para sabermos com certeza.

Querendo tirar a dúvida, fui procurar na fachada algum indício da localização. As três placas de publicidade – Café Caboclo, Açúcar União, Coca-Cola – não ajudaram: elas tanto poderiam estar num estabelecimento da capital como do interior.

Também não foi muito útil a faixa com propaganda política: “Jânio e Porfírio, candidatos do povo”. Jânio Quadros e Porfírio da Paz foram candidatos a prefeito e vice-prefeito da capital em 1952, mas também a governador e vice-governador do estado em 1954, e não dá pra saber a qual dessas eleições a faixa se refere. Se for à de 1954, podemos estar em qualquer cidade paulista.

Eu já ia desistindo quando cismei com a plaquinha com o número 3090, que indica o endereço do bar. Pensei que poucas cidades, além de São Paulo, devem ter ruas tão longas, com numeração tão alta. O passo seguinte foi tentar achar alguma rua ou avenida paulistana que tivesse esse número em uma esquina.

Não sei se foi sorte, mas bastou pesquisar alguns minutos no Google e bingo: cheguei à Avenida Lins de Vasconcelos 3090, na Vila Mariana. O Chevrolet e o burro não estão mais lá, mas a feiura se mantém e a esquina funciona até hoje como bar.

A probabilidade de dois posts seguidos sobre a Vila Bertioga era baixíssima, mas o improvável às vezes acontece. Poucos dias depois da foto que Diniz de Mello Fraga enviou à sua madrinha, eis que cai nas minhas mãos esta outra, que um vizinho dele mandou para a Eslovênia.

O Cine Bertioga abriu em 1953, mas os filmes anunciados na fachada mostram que a foto é de uns anos depois. “Testemunha do crime” é de 1954, e “Os tiranos também morrem” foi lançado em 1955. Há ainda mais dois filmes em cartaz: “Bomba em a selva do terror”, de 1952, e “Em busca de amor”, sobre o qual não encontrei nada.

O cinema ficava na rua Teresina 625, dez minutos a pé da casinha do post anterior. A madrinha do Diniz tinha portanto não só uma casa às suas ordens, mas também um cinema para se entreter. Se fosse hoje, ela teria que andar 4 quilômetros até o Shopping Plaza Mooca.

A foto foi revelada por ali mesmo, no número 221 da mesma rua. Taí outra coisa que não dá mais pra fazer no bairro.

O texto em esloveno, que o google me ajudou a traduzir, não permite saber quem são o homem e os três meninos na porta, mas nos conta um pouco do cinema por dentro:

“Toje naś kino ima 770 mesta napred ima salu di če kaju i sa strasse ularak to śtó pise to je ime od kino.”
(Nosso cinema tem 770 lugares. Na frente há um salão de espera, e o que se lê da rua é o nome do cinema.)

Um cinema de bairro com 770 lugares! Hoje nem os complexos de shopping têm isso.

“Madrinha
esta e a nova Rezidencia que mandei fazer recente mente na cuál esta as cuas ordes
Sao Paulo 24 de Novembro
Rua Jaboticabál 245
afilhado Diniz de Mello Fraga”

A rua Jaboticabal fica na Vila Bertioga, simpático bairro no distrito da Mooca. Mas a casa da foto não está mais no número 245. No seu lugar ergueu-se outra bem maior.

Diniz de Mello Fraga deu o endereço completo, mas foi impreciso na data. Ele enviou a foto à madrinha em 24 de novembro, mas não sabemos de que ano.

De qualquer forma, foi num tempo em que um trabalhador pouco letrado como ele conseguia “mandar fazer” uma casinha como esta na Mooca e colocá-la às ordens da madrinha.

Hoje ele estaria ralando num Uber ou entregando iFood. Talvez nem isso.

A foto, de 1934, é de um casal endinheirado morador do Jardim América. Ela está dentro do carro; ele, certamente atrás da câmera.

Pelo jeito, a intenção foi enviar para a Alemanha um registro do padrão de vida conquistado por aqui. Eu não falo nada de alemão, mas o Google me ajudou a traduzir:

Unsere privatvilla, rua Venezuela 35 im hintergrund. Unser neuer Chevrolet-wagen kaki farbe hell, mit dunkelbraum.”

(Nossa villa privada, na rua Venezuela 35, ao fundo. Nosso novo Chevrolet de cor caqui e marrom.)

Sorte deles terem feito esse registro, que atualmente seria impossível.

Quem mora hoje nesse bairro (se é que alguém mora, pois olhando não dá pra saber) conseguiria no máximo fotografar a mulher e o carro. A casa fica sempre invisível, escondida atrás de um muro fortificado.

Esta é a segunda tentativa de publicar este post. Uma versão anterior dele, que se chamou “Os enigmas do Ipiranga”, foi publicada algumas semanas atrás e chegou a ficar uns dias no ar, mas depois resolvi tirá-la do blog. Já já explico por quê.

1062

1061

Tudo começou quando encontrei este cartão postal, que uma tal de Marcie (parece ser esse o nome) recebeu em 1908 lá na cidade de Spa, na Bélgica:

Ma chère Marcie,
Pour l’elève photographe j’envoie une vue chic prise de la fenêtre de la maison vers le Musée d’Ypiranga; pour tous trois, tout ce qu’il y a de plus choisi comme souhaits de nouvel an de la part de Jeanne, des enfants et de Louis.

(Minha querida Marcie,
Para o aprendiz de fotógrafo, eu envio uma vista chique tomada da janela de casa em direção ao Museu do Ipiranga; para todos os três, tudo o que houver de melhor, como desejo de ano novo da parte de Jeanne, das crianças e de Louis.)

O texto pode até parecer trivial, mas para mim ele guardava três mistérios, e o post convidava os leitores a opinar sobre eles:
1. Se isto é um cartão postal, como assim a foto foi tirada “da janela de casa”?
2. Como alguém pode achar chique essa paisagem cheia de mato?
3. Onde ficava essa tal “janela de casa”, se é que de fato existiu?

Os leitores do meu blog são sempre muito generosos. Dois deles, a Mariana Pabst Martins e o Luís Salvucci, rapidamente resolveram o enigma nº 1. Eles me lembraram que, na época, era relativamente comum as pessoas mandarem fazer suas fotos com o verso preparado para cartão postal, para enviá-las pelo correio. Normalmente, esses cartões eram feitos com retratos de gente. Mas nada impedia que mostrassem alguma outra coisa, por exemplo a vista da janela.

Mariana e Luís têm razão: eu mesmo me lembro de já ter visto alguns cartões assim: o retrato da pessoa ou uma pose da família de um lado, e o impresso padronizado de cartão postal do outro. Mas não me lembrei disso ao escrever o post. Enigma resolvido!

O enigma nº 2 foi desvendado por outra leitora, minha amiga Patricia Carvalhinhos, professora do curso de Letras da USP. Para ela, a solução é linguística: a palavra “chic”, em francês, tanto pode referir-se a elegante ou refinado, como a bonito ou agradável. No Brasil estamos acostumados ao galicismo “chique” com o primeiro desses sentidos, mas desconhecemos o segundo. A vista da janela, então, é “chic” no sentido de bonitinha, pitoresca. E a explicação da Patricia é “chic” de chique mesmo!

Já o terceiro enigma foi o que mais deu trabalho, e a culpa foi toda minha.

É que, na postagem original, ele foi o único dos três que eu tentei responder. Desenvolvi um longo e tortuoso raciocínio para descobrir o ponto exato de onde a foto teria sido tirada em 1908.

A teoria era muito bonita, mas tinha um pequeno defeito: estava toda errada. Quando o José Carlos Vaz me convenceu disso, resolvi retirar o post do ar por um tempo, para reescrevê-lo. Afinal, por mais que desinformação e notícia falsa estejam em alta na internet, essa moda não chegou a este blog. Nos dias seguintes, com ajuda do Diego Vargas, que é bom detetive, comecei uma pesquisa pra ver se resolvíamos o enigma de forma correta.

E não é que conseguimos? Não só descobrimos de onde a foto foi realmente tirada, mas de quebra resolvemos um quarto mistério, que nem estava listado: quem são Jeanne, as crianças e Louis, a família que assina a mensagem do cartão.

Não vou contar aqui todos os detalhes da investigação, mas o fato de o cartão ter sido enviado a Spa foi, desde o início, uma pista importante. Em 1908 devia haver em São Paulo pouca gente dessa cidade, mandando cartões para amigos ou parentes. Fazia sentido, então, pesquisar famílias belgas morando por aqui na época.

A segunda pista importante veio em um artigo de pesquisadores do Instituto de Zootecnia do Estado de São Paulo, apresentado em 2010 no 2º Seminário de Patrimônio Agroindustrial, na Escola de Engenharia da USP em São Carlos.

O artigo conta a história do Posto Zootécnico Central, instituição que durante anos ocupou um grande terreno com frente para a atual rua Borges de Figueiredo, na Mooca. Ao ser inaugurado em 1905, o Posto Zootécnico teve como diretor provisório um engenheiro agrônomo belga (Hector Raquet, professor do Real Instituto de Agricultura de Gembloux), que, por sua vez, acabou trazendo da Bélgica outros agrônomos, imagino que ex-alunos seus. Um deles se chamava Louis Misson.

1063

O artigo ainda mostra uma planta do Posto Zootécnico datada de 1909, e descreve as benfeitorias ali existentes. Na página 2, lemos o seguinte:

“Quase metade da área é assinalada como sendo de várzea e a outra metade, parte em capoeira e parte com construções rurais, residências, pista para desfile de animais, campos de experimentação, horta e pomar, piquetes com pastagens, caixa d’água, bebedouro e estrumeira.”

As pistas estavam ficando quentíssimas. Já tínhamos um lugar descampado como o do cartão, que tinha residências, onde moravam belgas. A localização (imediações da rua Borges de Figueiredo, Mooca) é bastante compatível com o ângulo em que o museu aparece na foto. E um dos belgas do lugar se chamava Louis!

Para ter certeza mesmo, faltava encontrar uma ligação desse Luis Misson, do Posto Zootécnico, com a cidade de Spa, para onde o cartão foi enviado. Não foi difícil achá-la: bastou uma busca rápida em arquivos de jornais. Uma ata de reunião da Sociedade Rural Brasileira, publicada na Folha da Manhã de 21 de abril de 1929, menciona que o “dr. Luiz Misson e filho, exportadores de animaes de raça pura, de Spa, na Belgica” estavam pleiteando tornar-se sócios da instituição.

1064

Com isso a história se fechou: o Louis do cartão para Spa era mesmo o agrônomo Louis Misson. Em 1908, ele morava com a família em uma das residências do Posto Zootécnico, de onde a vista que se tinha em direção ao museu era essa mesmo. E em 1929 ele continuava por aqui, com o nome abrasileirado para Luiz mas ainda trabalhando com gado. O terceiro enigma do Ipiranga (que na verdade era da Mooca) estava assim resolvido.

O mais curioso é que só depois de todo esse trabalho eu fui me lembar deste outro post, sobre o Posto Zootécnico, que publiquei há 7 anos, e que mostra que de certa forma a resposta já estava aqui no blog. Se alguém ainda tiver dúvida de onde a foto do cartão foi tirada, basta comparar a posição do museu nas fotos dos dois posts.

1065

Depois disso tudo, só espero que o Vaz não destrua de novo a minha argumentação! 😀

1013

A igrejinha branca, ladeada de palmeiras, tinha um nome tão bucólico quanto difícil de pronunciar: Igreja da Penhinha. A foto é de 1936, e quando eu a vi fiquei curioso para saber onde era.

Fui pesquisar e fiquei sabendo que, apesar do nome, ela ficava bem longe da Penha. Vizinha do local onde a atual avenida João Dias encontra a marginal Pinheiros, a igrejinha marcava a entrada do Jardim São Luís, na região de Santo Amaro. O bairro nasceu nos anos 30, mas não sei se a igreja é dessa época ou já estava lá de antes. A altura das palmeiras parece indicar que já estava.

Também descobri que ela foi demolida em 1973. Mas o curioso é que, depois dela, diversos outros templos religiosos se sucederam no seu terreno.

O primeiro deles foi a Enpavi, uma grande empresa de pavimentação e terraplenagem instalada ali logo após a demolição. Eram os anos 70, época de culto ao asfalto na cidade de São Paulo.

Com a saída da Enpavi, veio o The Waves, um pós-modernoso parque aquático que funcionou entre 1991 e 1995. Projetado pelo arquiteto Ruy Ohtake, era um templo em que se cultuava o lazer caro e segregado, bem no espírito dos anos 90.

Por fim, o templo atual é entre todos o mais imponente. Taí uma foto dele, para termos uma ideia de como evoluímos em matéria espiritual.

1014

(A imagem de 1936 é do acervo fotográfico da Prefeitura. A atual é do Google. O endereço exato do local é Av. Guido Caloi 25, ao lado da ponte João Dias.)

1009

A foto foi enviada pelo cineasta Lufe Steffen, e de cara isso me deixou muito feliz: há tempos eu sou um admirador do trabalho do Lufe (adorei “São Paulo em Hi-Fi”, documentário sobre a vida LGBT na cidade nos anos 60 e 70), mas não fazia ideia de que ele conhecia o blog. Fiquei sabendo agora que ele não só conhece, mas é um leitor assíduo!

A foto é daquelas que, à primeira vista, só fazem sentido para um círculo restrito de pessoas e não têm muito a dizer para quem é de fora. Ela mostra os pais do Lufe, posando felizes e cheios de expectativa em 1975. O próprio Lufe de certa forma também está na foto, tirada dias antes do nascimento dele. Mas para quem não os conhece, a cena não diz lá grande coisa.

Mas isso é só à primeira vista, pois a foto também é daquelas que, com o tempo, viram interessantes documentos acidentais da vida na cidade.

O que confere essa característica a ela é o local que casal escolheu para a pose. Eles estão na porta de casa, mais precisamente no jardim da entrada do Edifício Marajó, prédio de classe média na rua Ministro Gabriel Rezende Passos, esquina com rua Inhambu, em Moema.

Em 1975, esses lugares ainda se prestavam a fotos de família como esta. De lá para cá, perderam completamente essa vocação. Qual é o casal que, hoje em dia, vai querer eternizar esse momento tendo ao fundo, como cenário, a guarita, a grade e os equipamentos de segurança do prédio?

Para quem quiser tirar a prova, aqui vai uma foto atual, tirada do mesmo ângulo pelo próprio Lufe.

1010

Na seleção de fotos de Joe J. Heydecker publicada ontem, estas duas tinham ficado de fora. Mas eu as acho tão simpáticas que resolvi fazer um novo post só para elas.

Ao contrário das de ontem, que mostram gente anônima nas ruas, estas são fotos de família. É a esposa do fotógrafo, Charlotte, quem aparece se despedindo da filha, Tita Heydecker, na porta da perua escolar. Pelo menos é o que explicam as fichas de ambas as fotos, no organizado acervo da Biblioteca Nacional da Áustria. As imagens são de 1961. A perua parece meio velha, mesmo para a época.

O que os austríacos provavelmente não sabem, porque não incluíram na descrição, é o endereço exato da cena. Mas estamos na rua Rocha 318, na Bela Vista, e o prédio ao fundo continua igualzinho até hoje.

Schulbus in São Paulo

Schulbus in São Paulo

Foi por intermédio de um leitor assíduo do blog, o Andre Borges Lopes, que eu conheci esta semana o trabalho de Joe J. Heydecker, um fotógrafo de quem eu nunca tinha ouvido falar. Fiquei um tempão olhando as fotos, fascinado.

Pesquisando na internet, fiquei sabendo que Heydecker nasceu em 1916 em Nuremberg, na Alemanha, viveu em diferentes países e produziu uma vasta e variada obra como jornalista, fotógrafo e escritor. A fase mais importante parece ter sido nos anos 40, na Polônia, onde ele fotografou clandestinamente os crimes de guerra nazistas no gueto de Varsóvia.

Mas as fotos que mais me chamaram a atenção foram as produzidas entre 1960 e 1985, período em que ele viveu em São Paulo e registrou o cotidiano da cidade.

As fotos de São Paulo são tantas, e tão interessantes, que foi difícil fazer uma seleção. Acabei trazendo estas, do início dos anos 60, porque mostram a paisagem humana da cidade: falam da vida em São Paulo por meio das pessoas nas ruas. Minhas favoritas são das da feira que funcionava na praça Roosevelt, e as do jardim do Museu do Ipiranga.

Heydecker morreu em 1997 em Viena, e suas fotos ficaram lá. O acervo de 25 mil negativos pertence hoje à Biblioteca Nacional da Áustria. As imagens, digitalizadas, estão disponíveis para pesquisa aqui: http://www.europeana.eu.

Obrigado ao Andre pela indicação!